Revista Época
Em 26 de Julho de 2009

O "toque de recolher" para jovens se espalha pelo interior. Mas é isso que vai reduzir a altíssima taxa de homicídios de adolescentes no Brasil?


Fincada no noroeste de São Paulo, perto da divisa com Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, Fernandópolis, de 63 mil habitantes, tornou-se o centro de um debate nacional. Nos últimos meses, juízes de diversas partes do país têm usado como modelo o toque de recolher para crianças e adolescentes adotado lá. A ideia se dissemina pelo interior do Brasil. Desde maio, menores desacompanhados dos pais ou responsáveis têm horário certo para estar em casa em Fátima do Sul, Mato Grosso do Sul: 20 horas para as crianças e 22 horas para os adolescentes. Nas baianas Santo Estêvão, Ipecaetá e Antônio Cardoso, há restrições desde junho. Na semana passada, Coroatá, Maranhão, proibiu menores de ficar nas ruas ou em locais públicos depois de meia-noite.
Com regras mais ou menos restritivas para crianças e adolescentes e punições para os pais - que variam de uma simples advertência até a possibilidade de perder a guarda dos filhos -, o toque de recolher se espalhou por dezenas de municípios de, pelo menos, nove Estados brasileiros. E fez emergir um debate: juízes podem limitar a circulação de menores de idade por ruas e ambientes públicos ou essa é uma decisão que cabe exclusivamente à família e não pode ser terceirizada?
Os defensores do toque de recolher alegam que a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente atribuem ao Estado o dever de zelar pela segurança dos menores. E que a intenção é proteger os jovens de riscos como abuso de álcool e drogas e do envolvimento com a prostituição e a criminalidade.
A eficácia do toque de recolher ainda não está comprovada. Na comarca de Fernandópolis, que abrange também as cidades de Pedranópolis, Macedônia e Meridiano, o toque começou há quatro anos. De acordo com a Vara da Infância e da Juventude local, entre 2005 e 2008 o registro de delitos cometidos por adolescentes caiu 29%.
Não se sabe, porém, se o número de vítimas nessa faixa de idade mudou. As estatísticas da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, que não discriminam se os crimes foram praticados por adultos ou menores, mostram que, naquele mesmo período, furtos e roubos na região de Fernandópolis diminuíram cerca de 45% e 10%, respectivamente. E roubos e furtos de veículos cresceram 25%. "A população pode achar que o toque de recolher vai reduzir drasticamente o crime, mas isso é ilusão. Menos de 10% dos delitos são cometidos por adolescentes", diz Ariel de Castro Alves, integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
O toque de recolher já teve consequências inesperadas, como deslocar o crime de um lugar para outro. Depois da imposição do toque em Santo Estêvão, meninas submetidas à prostituição na BR-116, a Rodovia Rio-Bahia, migraram para outra comarca. Adolescentes passaram a consumir drogas e álcool no início da noite, segundo o juiz José de Souza Brandão Netto. "Tivemos de antecipar o horário das rondas", diz. Apesar da necessidade de ajustes, Brandão Netto afirma estar satisfeito com a experiência: "Estamos ajudando os pais a educar os filhos". Alguns estudiosos acreditam que o Estado enfraquece a família ao assumir uma responsabilidade - trazer os filhos de volta para casa - que sempre coube aos pais. "Ações para afastar crianças e adolescentes de situações de risco devem ocorrer 24 horas por dia, e não apenas à noite. Esse é um trabalho para educadores, e não para a polícia", afirma Castro Alves. "Não se pode restringir o direito de ir e vir com argumentos genéricos de garantia da segurança", afirma Luiz Antonio Miguel Ferreira, promotor de Justiça da Infância e da Juventude de São Paulo.
Na Bahia, a prostituição de menores migrou para regiões sem o toque de recolher
Em agosto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deverá começar a debater a legalidade do toque de recolher. Se os conselheiros do CNJ entenderem que a medida não fere a legislação, juízes do país todo terão carta branca para adotá-la. Se o entendimento for contrário, os municípios que implantaram o toque terão de abortá-lo.
Na comarca de Fernandópolis, a que virou referência, não há mais horário limite para chegar em casa. Grupos de conselheiros tutelares e policiais continuam as rondas iniciadas há quatro anos. A diferença é que, agora, adolescentes que estiverem altas horas da noite apenas batendo papo na rua, longe de situações consideradas de risco, não serão levados para o fórum nem para o Conselho Tutelar; seus pais não serão mais punidos. Para o juiz Evandro Pelarin, criador do toque, a população já assimilou a ideia. "Hoje já não há tantos adolescentes nas ruas bebendo álcool ou correndo outros riscos", afirma. "O nosso trabalho foi aprimorado. Estamos nos concentrando mais no atendimento psicossocial das famílias."
Embora o toque de recolher divida as opiniões de juristas e dos profissionais que atuam na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, todos concordam num ponto: a juventude brasileira está vulnerável. Um estudo divulgado na semana passada estimou em 33.500 o número de homicídios de adolescentes no período entre 2006 e 2012 no Brasil. A projeção é do sociólogo Ignacio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, criador do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), uma tentativa de medir a gravidade do problema. Segundo Cano, de cada grupo de mil adolescentes brasileiros, dois podem ser assassinados antes de completar 19 anos.
Entre as 20 cidades mais violentas do IHA, cinco são mineiras. Governador Valadares, a segunda no ranking nacional, só perde para a paranaense Foz do Iguaçu. "As projeções para Governador Valadares e outros municípios de Minas não vão se confirmar. Os homicídios estão em queda no Estado", afirma Maurício Campos Júnior, secretário de Defesa Social. "Entre 2007 e 2008, os assassinatos de adolescentes caíram 12% em Belo Horizonte. Gangues de jovens têm sido monitoradas em Governador Valadares e outras regiões." De acordo com Campos Júnior, um programa do governo estadual, o Fica Vivo - voltado para a prevenção de homicídios e outros conflitos entre jovens que vivem em áreas vulneráveis -, está em expansão, e os resultados têm sido positivos. O governo do Paraná também contesta os números do estudo e diz que os homicídios em Foz do Iguaçu estão em queda. A discussão sobre a adoção do toque de recolher envolve também um aspecto prático - é mais fácil monitorar os adolescentes numa pequena cidade do interior do que em uma metrópole. Eficaz ou não, o toque de recolher certamente não será a panaceia para o grave problema da violência contra os jovens no Brasil.

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